Segundo Nicolau Sevcenko, no seu livro "Literatura como Missão", “A palavra organizada em discurso incorpora em si (....) toda sorte de hierarquias e enquadramentos de valor intrínseco às estruturas sociais de que emanam.” (p.19-20) . Assim, num simples gesto de leitura, entrecruzam-se histórias e sociedades diferentes, em distintos momentos de sua evolução. O diálogo que se estabelece coloca em contato distintas experiências sociais e individuais, antigas e contemporâneas, através do suporte material em que se constitui o texto do livro, e o repertório do leitor. Nessa perspectiva dialógica estabelecida entre o texto escrito e os seus leitores, o presente trabalho busca observar as relações estabelecidas entre a sociedade brasileira (final do século XIX) e a literatura do período representada por Machado de Assis no conto O alienista.
Os escritos de Machado de Assis têm originado ao longo dos anos um considerável número de estudos. São diversas leituras desenvolvidas, seja por críticos literários ou estudiosos de áreas próximas, sendo possível encontrar desde análises que privilegiam um estudo psicológico do autor a partir da criação de seus personagens fictícios, Lúcia Miguel Pereira , ou mesmo aquelas que percebem a narrativa como reflexo do real. Diante de tão variadas possibilidades destacaremos àqueles estudos que procuram refletir sobre autor e obra em um determinado contexto histórico-social.
Nesta perspectiva de análise da obra literária enquanto resultado do julgamento de um ator social, utilizamos o pensamento de Sidney Challoub que afirma encontrar nos escritos machadianos não só o pensamento do contador de histórias mas, o seu vínculo com o papel de historiador através das estratégias literárias utilizadas pelo narrador “...inventou personagens, diálogos e,(....) , narradores que pareciam viver e expressar apenas aquilo que era rigorosamente compatível com as expectativas dos leitores/senhores. Ao fazer isso, o bruxo realizou o objetivo, todo seu, de dizer as verdades que bem quis sobre a sociedade brasileira do século XIX.” . Dessa maneira, analisamos o enredo do conto o alienista enquanto discurso possível, e não como a criação de um gênio que transcende o seu tempo e espaço social.
Publicado no jornal A ESTAÇÂO entre 1881 e 1882, a temática central conduz o leitor a uma eterna reflexão sobre os limites entre a insanidade e a razão; o poder da palavra, a loucura da ciência e as relações estabelecidas na sociedade do período. Neste caso, ao utilizar a questão da loucura enquanto uma alegoria, o conto machadiano encerra novas possibilidades de estudo, por ser um relato que apresenta ao leitor os rituais de subserviência, bajulação e clientelismo presentes no Brasil em finais do século XIX. Em contrapartida, o texto questiona o poder das teorias científicas evolucionistas, positivistas e sociodarwinistas trazidas da Europa que, neste momento histórico, indicariam as respostas para todos os males desta civilização em busca do progresso.
Em linhas gerais, o conto (dividido em treze capítulos) apresenta a cidade de Itaguaí; e como a chegada do médico Simão Bacamarte, apresentado enquanto o “... filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanha...” (p.273) , modificaria as relações existentes valendo-se do poder conquistado através da utilização dos experimentos e pensamento científico.
No primeiro momento, deparamo-nos com a personalidade científica de Simão Bacamarte presente mesmo na escolha da sua esposa “....D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte”.(p.273-274). Com essa afirmação, o autor reforça a ideia do conto enquanto uma paródia ao cientificismo presente nas ideias transplantadas para o Brasil, através dos representantes da elite local, como o Simão Bacamarte, que desenvolveram seus estudos na Europa.
Dessa maneira acompanhamos a criação da Casa de Orates, ou Casa Verde, onde o alienista define o seu objetivo “O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal.” (p.277).
Durante o processo de seleção e classificação dos loucos, que serão vários durante a história, notamos outra face do conto, dentre os alienados percebemos os loucos “por amor”, os com mania de grandeza que recitavam toda a sua genealogia, ou faziam discurso em latim e grego, os casos de monomania religiosa entre tantos outros . Assim, o asilo se transforma não somente em um local de enclausuramento dos loucos mas um retrato da sociedade vigente com seus extratos sociais delimitados e classificados.
Na sequência da catalogação dos loucos, os critérios utilizados são tantos que em determinado momento, pessoas consideradas “normais” se tornam objeto de estudo. A desconfiança em relação aos procedimentos utilizados que não estabeleciam com clareza quem seria alienado gera, em certo momento, a revolta da população local. A Revolta dos Canjicas liderada pelo barbeiro Porfírio recebe adesão não só da população, como também dos Dragões e de alguns vereadores. Neste processo, contemplamos toda a nova estrutura criada por Machado, o barbeiro em determinado momento percebe “despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde, e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí” (p.302).
Grande exemplo da vida real, o barbeiro que na organização social estipulada não teria como ascender socialmente, emprega a revolta em benefício próprio mais de uma vez. Após vencer a contenda em relação à Casa Verde, novamente o barbeiro Porfírio, induz Bacamarte a questionar seu compromisso com a ciência. Esta deveria estar articulada à política e ambas devem estar voltadas para a sociedade de Itaguaí: “Unamo-nos e o povo saberá obedecer” (p.309). Porém, a “política legítima”, não é o propósito da pesquisa de Bacamarte, e sim a maneira como o barbeiro modificou a situação em benefício próprio alcançando o posto de “protetor da vila”, e ao mesmo tempo articulando novas alianças de poder que não impediram uma nova revolta gerada mais uma vez por um barbeiro, João Pina, e consequentemente a restauração através de uma força mandada pelo vice-rei.
Após sucessivas revoltas e mudanças de poder, a única instituição que permanece é a Casa Verde; e o alienista na fé inabalável de estabelecer em Itaguaí o primado da razão, continua desenvolvendo as suas teorias e apreendendo em diversos momentos alguns espécimes alienados conforme o postulado científico vigente. Dessa maneira, a ciência que seria um dos mecanismos de manutenção dessa sociedade, transforma-se no seu maior questionador; aquele que deixa transparecer a inutilidade das relações de favor através do “homem de ciência” Simão Bacamarte. Este percebe a falência do sistema real e como não o aceita termina por se colocar enquanto o único alienado da estória.
Há na obra uma grande preocupação em fixar a problemática do homem universal, buscando inspiração nas ações cotidianas e no homem comum.
Há na obra uma grande preocupação em fixar a problemática do homem universal, buscando inspiração nas ações cotidianas e no homem comum.
O autor penetra na consciência das personagens, sondando-lhes o funcionamento e captando os impulsos contraditórios dos seres humanos, desmascarando o jogo das relações sociais, enfatizando o contraste entre a essência e a aparência, em que o sucesso financeiro é o objetivo primordial. O homem deixa de ser o centro, mas passa a ser parte de um sistema. Há algumas características marcantes no conto, que não podemos deixar passarem despercebidas: apreensão da realidade, o não-eu em nível de realidade e descrição, a precisão de detalhes, ocupando o lugar central enquanto técnica narrativa.
O conto apresentaria o grande paradoxo da sociedade brasileira no século XIX. Neste período, a ciência teria estabelecido o primado da razão e do racionalismo na Europa. Essas ideias cientificistas, positivistas, evolucionistas e sociodarwinistas seriam transplantadas para o Brasil de maneira a coexistirem com as estruturas vigentes. Dessa maneira, as análises sociais presentes no conto, principalmente em relação ao comportamento dos personagens que utilizam a lisonja e a bajulação para alcançarem seus objetivos recriariam o conceito de loucura como uma paródia à ordem desejada. Segundo José Maurício G. de Almeida no seu texto Da Humana Comédia ou No Teatro em Itaguaí, “O alienista não é uma paródia da ciência psiquiátrica ou dos manicômios, no sentido realista do termo, mas uma alegoria, elaborada com a mais fina e penetrante ironia sobre a natureza humana e os desconcertos do mundo”. (p.172)
Utilizando novamente o pensamento de Nicolau Sevcenko, “A literatura (...) fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as potencialidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime dos homens que foram vencidos pelos fatos.” . Nesse sentido, ressaltamos os laços existentes entre ficção e realidade enquanto mais um testemunho necessário à compreensão da história propriamente dita, com a diferença de estarmos utilizando outra forma de discurso que, às vezes, fornece voz às camadas “silenciadas” na historiografia tradicional.
Nenhum comentário:
Postar um comentário